
Em 13 de
dezembro de 1923, o jornalista e advogado Manoel Dantas, com o pseudônimo de
“Braz Contente”, publicou no jornal “A Republica”, uma nota intitulada “Coisas
da Terra”, onde noticiou que “estava sendo organizada uma grande quermesse, que
ocorreria na noite de natal e teria lugar nos jardins do Palácio do Governo.
Esta era uma iniciativa de senhoras da sociedade local, que buscavam ajudar o
Instituto de Proteção e Assistência a Infância a construir o Hospital das
Crianças”.
O edifício
estava sendo construído na avenida Deodoro, idéia do médico Manoel Varela
Santiago Sobrinho para atender às camadas mais carentes da população. Por esta
época, eram altíssimos os índices de mortalidade infantil na capital, devido às
precárias condições de higiene e do atendimento à saúde pública. Estes
problemas incomodaram uma parte da sociedade local, que se disponibilizou a
ajudar.
À frente
desta iniciativa se destacou a figura da poetisa Palmyra Wanderley, que em 1923
era uma das mais conceituadas intelectuais da terra, possuía uma cultura
elevada, vinha de uma família de intelectuais, sendo assídua colaboradora em
jornais e revistas, tanto potiguares como de outros estados.
Junto com a
liderança de Palmyra, mais de 50 mulheres se engajaram nesta obra. Não deixa de
ser interessante que, em meio a uma cidade onde predominava a família
patriarcal e o machismo, se observa esta participação feminina. Foi publicada
uma lista com os nomes destas participantes, onde se percebe que a grande
maioria destas mulheres faziam parte da elite natalense. Um grupo delas chegou
inclusive a sair pela Natal de 25.000 habitantes, para vender as entradas da
quermesse, pelo preço módico de 2$000 réis.
Como atração
principal, Palmyra decidiu não colocar algum artista declamando poesias
clássicas, ou algum instrumentista tocando alguma peça européia, ou ainda
artistas vindo de outras capitais. Sua decisão foi por um artista potiguar, já
com uma certa idade, um poeta que declamava seus versos junto com uma rabeca,
além de tudo negro e ex-escravo. Estamos falando de “Fabião das Queimadas”.
Fabião
Hermenegildo Ferreira da Rocha nasceu escravo, em 1850, na Fazenda Queimadas,
do coronel José Ferreira da Rocha, no atual município de Lagoa de Velhos (RN).
Começou a cantar durante os trabalhos na roça. Tornou-se tocador de rabeca,
tendo adquirido seu instrumento aos 15 anos, com o apoio do dono, que permitia
e incentivava que ele cantasse nas casas dos mais abastados da região e nas
feiras. Conseguiu angariar algum dinheiro que, aos 28 anos, possibilitou
comprar a sua alforria. Era analfabeto, mas criava versos, como o "Romance
do boi da mão de pau", com 48 estrofes. Suas composições apresentam traços
dos romances herdados da idade média.
Em 1923,
Fabião das Queimadas já era conhecido e respeitado no estado, onde no início do
período republicano manteve ligações com políticos da terra, emprestando seus
talentos ao criar versos que serviam, ora para enaltecer os amigos poderosos,
ora para denegrir seus adversários. Já suas apresentações em Natal,
aparentemente eram raras ou restritas a residências de particulares que
gostavam da prosa sertaneja.
“A
Republica”, de 19 de dezembro, em novo texto assinado por “Jacinto da
Purificação”, trouxe uma extensa reportagem sobre o cantador, onde buscavam
apresentá-lo a cidade; comentou como no passado Fabião havia conquistado sua
liberdade, “que a fama de Fabião corria mundo”, mas ressaltou “que o seu
estrelato alcançava aquele mundo que não ultrapassava as fronteiras da nossa
terra”.
Em 1923, a
expectativa de vida dos mais pobres no Brasil mal chegava aos 60 anos. Fabião,
então, com sessenta e dois anos, era considerado com “ótima lucidez, perfeita
memória e bom timbre de voz”. Afirmou-se que era “verdadeiramente um desses
milagres para os quais a ciência não encontra explicação”. Informaram que
“aquilo que Fabião chama de sua obra”, certamente daria um volume com mais de
300 páginas. Algumas destas obras haviam sido criadas pelo cantador 55 anos
antes, em 1868. Para recitá-los ou cantá-los, junto com sua inseparável rabeca,
ele utilizava apenas sua privilegiada memória.
Uma passagem
interessante comentava que certa ocasião, um amigo mais chegado lhe perguntou
como ele criava e guardava seus versos. Na sua simplicidade, o cantador disse
que “quando eu quero tirar uma obra, me deito na rede de papo prá riba, magino,
magino e quando acabo de maginar, está maginado pru resto da vida”.
Chamou
atenção do autor do texto como Fabião era um sertanejo dotado de uma imensa
bondade, pois lembrava saudosamente do seu antigo senhor, José Ferreira. Em uma
passagem, o autor conta uma história onde Fabião rebate uma crítica feita ao
seu antigo amo, por não tê-lo mandado à escola quando jovem, ao que o cantador
comentou; “meu senhor foi sempre homem de muito tino e ele bem sabia que se me
tivesse mandado ler e escrever, quem o vendia era eu”.
O final do
texto de “Jacinto da Purificação”, deixa transparecer um certo receio de
fracasso ante a apresentação do poeta, que estava “descolado do seu meio”.
Colocava entretanto que, “qualquer que seja a sorte da prova que se vai
suceder, Fabião para nós será sempre o velho genial”.
A festa
começou às dezoito horas do dia 24 de dezembro, uma segunda-feira. Um dos
paraninfos era o então governador Antonio José de Souza, que estava presente.
Desde cedo
começou a afluir uma grande multidão, calculada em torno de 4.000 pessoas. Com
um caráter estritamente familiar, a festa mudou o quadro da principal praça da
cidade, uma área que normalmente, após as oito da noite ficava deserta. Neste
dia estava “exuberantemente iluminada e cheia de vida”. O Doutor Varela
Santiago, sempre acompanhado de Palmyra Wanderley e de outras organizadoras,
seguiam entre as barracas, agradecendo a participação de todos.
Várias
barracas estavam pela praça, todas com nomes bíblicos como ”Betesda”,
“Carfanaum”, “Jericó” e, apesar do caráter religioso das festividades, o local
mais freqüentado foi à barraca chamada “Poço do Jacó”, por vender bebidas
geladas, principalmente cerveja.
Em locais
distintos tocavam as bandas marciais da Polícia Militar e da guarnição do
quartel federal, o 29º Batalhão de Caçadores.
Havia várias
atividades atléticas, como um torneio de “queda de braço” e um concorrido
torneio de bilhar, onde se destacaram os jovens José Wanderley e Francisco
Lopes, tendo este último sido o vencedor.
Em um palco
armado foram se apresentando os seresteiros, cantores e tocadores da cidade,
todos amadores. Uma delas foi a “senhorinha” Edith Pegado, que chamou a atenção
de todos por cantar uma cantiga “roceira” chamada “Sá Zabê do Pará”.
Mas a atração
principal era “Fabião das Queimadas”. Ao subir no palco com sua inseparável
rabeca, o trovador foi entusiástica e longamente aplaudido e desenvolveu uma
apresentação que foi classificada pela “A Republica” como “magnífica”, composta
de “repentes” e “louvoures”, que fizeram o deleite do público natalense naquela
noite.
Uma coluna
publicada cinco anos depois, por ocasião da morte de Fabião, mostra a
repercussão que esta festa teve. Um articulista que assinava simplesmente
“R.S.” escreveu que “Ainda estamos bem lembrados daquela noite em que
promovendo-se nesta capital uma festa, Fabião das Queimadas improvisava
chistosos versos, magníficos na sua rudeza e simplicidade”. O articulista
recordava alguns destes versos, que foram dirigidos aos espectadores mais
ilustres, como o governador Antonio de Souza, Henrique Castriciano, Varela
Santiago, Palmyra Wanderley e Eloy de Souza. A este último, devido a sua
herança negra, Fabião soltou uma quadra que terminava assim; “Se o sinhô num
fosse rico, era de nossa famía”.
Nos outros
dias, poucas notas são divulgadas pela imprensa sobre a quermesse, fazendo esta
festa cair logo no esquecimento. Contudo, ao observarmos os detalhes existentes
na elaboração e desenrolar desta iniciativa, vemos que as mulheres potiguares,
sob o comando com Palmyra Wanderley, conseguiram muito mais do que a nobre
causa de angariar fundos para o hospital do Dr. Varela Santiago. Com uma só
ação, Palmyra e as outras mulheres, muitas certamente sem nem ao menos perceber
o que estavam fazendo, atingiam em cheio aspectos negativos que permeavam a
sociedade potiguar da sua época.
Quem busca
conhecer com maior profundidade o pensamento da sociedade potiguar do final da
década de 10 e início dos anos 20 do século passado, encontra fortes traços de
preconceito contra a mulher, machismo, racismo e a pouca referência sobre as
camadas populares e suas manifestações tradicionais. Evidente que não seria
esta quermesse de Natal de 1923 que mudaria uma sociedade com arraigados e
antigos valores, mas iniciativas como esta ajudavam a criar mudanças.
Para Fabião,
ao tocar na capital, não fez nada diferente do que estava acostumado a fazer
nas casas e nas feiras dos povoados do sertão, e nem poderia ser de outra
forma. Fabião cantou a sua idéia de Mundo, as coisas da sua terra, da sua
gente, trazendo para Natal, através dos seus versos, o que ele conhecia do
sertão e assim se perpetuando na nossa memória.
Fabião das
Queimadas morreu em 1928, aos sessenta e oito anos, de tétano, em uma pequena
fazendola de sua propriedade, chamada “Riacho Fundo”, próximo a Serra da Arara
e ao Rio Potengi, na atual cidade de Barcelona (RN).
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